Abrir e fechar os olhos
Para meu pai
Insistem para que eu abra os
olhos. Pegam na minha mão, acariciam meu rosto, tentam uma graça, um incentivo.
Esperam, rezam, se revezam. Sai o Otávio, que fala baixo e suspira alto, sai de
cabeça baixa, sem cumprimentar a irmã, entra a pequena, de sorrisos medidos,
gestos ensaiados, olhar atento. Tem sido assim nos últimos quarenta e três
dias, vivemos a mesma vida em mundos paralelos, eu preso à cama e eles
acorrentados a mim.
Não sei precisar de onde veio o
golpe, se do revólver de um vagabundo, da fúria de um vizinho, da violência de
um motorista ou do capricho de um deus. Não sei compreender os motivos, as
culpas, os remorsos, tampouco as ausências e os desejos que ficaram pra trás.
Não sei aplacar a ânsia das pernas, acalmar a urgência dos pulmões, amenizar a
dor da pele, iludir os sentidos. Mas enquanto permanecer nesse mundo poderei
ver e ouvir os seres deste e do outro mundo, estar aqui e em todos os lugares,
nesse e em todos os tempos.
A pequena traz uma cartolina
enrolada, com alguma dificuldade vai revelando o papel e nele há fotografias,
muitas, tantas quanto possível para uma vida pacata. Ela pede licença para
colar o presente na parede, quer que seja minha primeira visão no dia em que eu
abrir os olhos. Com cuidado prende as pontas, ajeita os recortes, observa o
resultado. No fundo não acredita que eu esteja ouvindo, mas fala alto, fala
para si, não sabe ainda que eu não apenas vejo cada imagem como também me
transporto para o dia em que foi tirada, visito cada casa, abraço cada amigo.
Reparo, depois de uma reveladora e cansativa volta no tempo, que em algumas
sorrio, em muitas não, em algumas estou sentado, em outra de pé, em algumas
estou sem camisa, em outros de terno e gravata, em algumas olho para a câmera,
em outras para um ponto qualquer, mas em nenhuma, absolutamente em nenhuma
delas estou sozinho, como em nenhum momento dessa viagem me senti sozinho, nem
no dia da morte da filha bebê nem no dia da certeza que ela não voltaria aos
meus braços nem na derradeira manhã do golpe. Nunca.
A cartolina fica na parede. Com
o passar dos dias me acostumo com a presença dos pequenos e aprecio a
persistência da pequena, que depois das fotos trouxe um radinho, um bibelô da
casa, meu travesseiro. E cada vez que exibia o presente, insistia para que eu
abrisse os olhos, uma insistência classificada por médicos e enfermeiros como
comovedora, ingênua e triste. Mas ela se aproximava, beijava meu rosto como
nunca dantes, baixava a cabeça para rezar e dizia: eu espero, pai, eu espero o
tempo que tu precisar.
Para ela foram meses, para mim
apenas um instante, pois o tempo não é igual em todos os mundos. Um dia ela
chegou sem esconder uma alegria transcendente, alegria maior que os primeiros
traços de preocupação já cravados na face, maior que o permitido pelo fio
desesperado de esperança no meu retorno, e me pediu para abrir os olhos e ver o
milagre da vida. Pegou na minha mão e a pousou com cuidado no seu ventre, com a
mão já posta falou que o bebê teria o meu nome e não em memória, mas como
homenagem a alguém que escolheria viver, e nesse dia, nesse dia lembrei do meu
primeiro bebê, do anjo que partira cedo, e finalmente cedi ao desejo de todos.
Devo ter aberto um olho só e
com grande dificuldade, pois demorei para ter uma visão clara do rosto delicado
da pequena, do rosto de traços tão semelhantes ao da minha juventude, e quando
consegui ela chorava sem soluçar, as lágrimas escorrendo e caindo na minha mão
morta sobre o ventre vivo. Abri um olho, depois outro, ou parte dele, abri-os e
meu olhar não deve ter transmitido dor, nem medo, nem revolta, nem tristeza. Em
pouco tempo todos meus filhos estavam ali e a pequena segurava a cartolina que
me trouxera de volta para o mundo dela. Um por um se aproximaram e beijaram
minha face, como nunca antes.
Não voltei a fechar os olhos,
observava tudo com a intensidade de quem já conhecera outro mundo. E não
voltaria a fechar os olhos jamais não fosse a pergunta muito grave da pequena:
a gente te quer por perto seja como for, pai, mas precisamos saber se tu também
quer. Tu quer, pai? Responde pra nós, dá um sinal. Tu quer ficar com a gente?
Eu jamais voltaria a fechar os olhos, mas precisei fechá-los e abri-los com
calma para que entendessem meu sim. Sim.
Daquele dia em diante, abrir e
fechar os olhos deixou de ser um gesto involuntário, singelo, automático. Foi
com um abrir e fechar de olhos que concordei com o nome do bebê, com um abrir e
fechar de olhos que agradeci à pequena, com um
abrir e fechar de olhos que aprovei a cartolina com fotos e, mais tarde,
com um abrir e fechar de olhos que escolhi cama, quarto, médicos. Foi com um
abrir e fechar de olhos que escolhi viver.
Marcelo Spalding
www.marcelospalding.com
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